O conceito de direitos humanos na sociedade da informação consiste em duas expressões principais: os direitos humanos e a sociedade da informação.

Vinculando uma tradição jurídica a um conceito político vagamente definido

Os direitos humanos se baseiam em amplas e profundas raízes históricas, uma vez que praticamente todas as culturas, religiões e filosofias contêm princípios de direitos humanos, embora contenham também práticas incompatíveis com esses mesmos direitos. No entanto, uma data importante para se colocar no programa internacional é 10 de dezembro de 1948, quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada na Assembléia Geral da ONU, após a Segunda Guerra, para garantir que um horror semelhante nunca mais viesse a ocorrer. A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem sido aplicada por meio de um grande conjunto de convenções e declarações internacionais, algumas delas vinculadas a outras declarações políticas, que os Estados-membros da ONU se comprometem a seguir em suas legislações e práticas nacionais [1].

Além disso, os direitos humanos são referidos conforme definidos na Declaração Universal de Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, como os direitos políticos, sociais, culturais e econômicos dos cidadãos. Na Conferência Mundial das Nações Unidas Sobre Direitos Humanos de 1993, realizada em Viena, a comunidade internacional reafirmou os quatro princípios que são o ponto central do regime com direitos humanos: os direitos humanos são universais (direitos que pertencem a todas as pessoas), indivisíveis (os direitos não podem ser separados uns dos outros), inter-relacionados (os direitos afetam-se uns aos outros) e interdependentes (um direito não pode ser obtido integralmente sem que os outros também o sejam) [2].

A expressão sociedade da informação tem raízes acadêmicas que datam da metade da década de 70 [3], mas foi revitalizada politicamente pelo projeto americano e europeu de privatizar e liberalizar inteiramente setor de telecomunicações. Em 1994, Al Gore, então vice-presidente dos EUA, anunciou a criação da “Infra-estrutura Global de Informação”, o que estimulou na Europa a geração de diversos livros brancos e relatórios na metade dos anos 90, sendo o mais famoso deles o Bangemann Report, elaborado por um grupo de especialistas de alto nível, em 1994. Na retórica oficial, as muitas mudanças políticas, econômicas, científicas e sociais relacionadas à globalização e à infra-estrutura de comunicações logo se transformariam na “sociedade da informação” [4].

Na sociedade civil e em ONGs americanas e européias, desde o início da década de 90 houve uma ênfase nos desafios dos direitos humanos específicos do ambiente digital, especialmente em relação à proteção da privacidade e à liberdade de expressão. Essa liderança inicial da Europa e dos EUA se transformou hoje em um número cada vez maior de grupos da sociedade civil do mundo inteiro, que têm como foco a análise e as campanhas políticas pela defesa dos padrões de direitos humanos no contexto digital [5]. Uma das maiores redes mundiais desses grupos é a Campanha Global pela Liberdade na Internet, a GILC (do inglês, Global Internet Liberty Campaign), uma organização com amplo escopo que conta no momento com mais de 60 organizações-membro [6]. No entanto, antes do desenvolvimento da comunidade de ‘ciberdireitos’ com seu enfoque mais específico na Internet, diversos movimentos sociais levantaram questões de informação e propriedade de mídia, bem como de acesso à comunicação [7].

Quando os esforços da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação (CMSI) foram iniciados em 2002, uma de suas mais importantes contribuições foi criar e facilitar um espaço global, no qual esses bem diversos grupos e movimentos da sociedade civil se encontrassem e fossem obrigados a interagir, uma vez incluídos em um processo formal das Nações Unidas como uma só voz, a voz da ‘sociedade civil’ [8]. Tanto em termos de formação de uma rede da sociedade civil em escala global, quanto em termos de luta pelos direitos humanos dentro do programa da sociedade da informação [9], a CMSI teve um papel significativo.

Dignidade, liberdade e igualdade para todos os seres humanos

Não existe uma única definição do conceito mais amplo de direitos humanos na “sociedade da informação”, embora muitos documentos considerem os direitos humanos como a base da era de informação.

O conceito tem pelo menos duas conotações. Uma delas se relaciona às formas pelas quais a tecnologia pode ser usada como um elemento ativador dos trabalhadores pelos direitos humanos. Há inúmeros exemplos de como a Internet facilitou a comunicação dos grupos oprimidos, permitiu aos ativistas de direitos humanos denunciar violações, fazer campanhas para além de suas fronteiras e ter acesso a informações globais, bem como apoio para fortalecer sua causa [10].

O outro uso do conceito, mais enfatizado aqui, relaciona-se ao desafio de proteger e reforçar os padrões de direitos humanos em um determinado momento no tempo, em que novos os meios de comunicação estão mudando basicamente o modo como vivemos, trabalhamos e nos desenvolvemos. Os direitos humanos estão sujeitos a uma interpretação dinâmica e parte de sua essência é seu reconhecimento como padrão em um determinado contexto em um dado momento. Isso exige a análise de como os direitos humanos são influenciados pelo desenvolvimento atual, como a base de um determinado direito pode ser potencialmente ameaçada, como isso pode ser melhorado e - o fator crucial - em que extensão o sistema de proteção existente é adequado e eficaz, dada a realidade dos novos desenvolvimentos tecnológicos. O órgão internacional de direitos humanos está assim em evolução perpétua para rejeitar novas ameaças, assim como para englobar novas oportunidades para sua expansão. Historicamente, essa evolução foi sempre o resultado de lutas sociais conduzidas por diferentes grupos em conjunturas históricas específicas. A formação de códigos relativamente crescente de direitos das mulheres e dos povos indígenas é um caso especial.

Representantes da sociedade civil presentes na CMSI insistiram no fato de que aplicar esse sistema de direitos humanos à sociedade da informação implica considerar a dignidade, a liberdade e a igualdade de todos os seres humanos como o ponto de referência inicial, em vez de se levar em conta as questões tecnológicas. Engloba a tarefa de nos voltarmos aos valores básicos pelos quais desejamos guiar os rumos da sociedade da informação, bem como garantir que esses padrões continuem a ser mantidos.

Um desafio central dos direitos humanos para as muitas mudanças que ocorrem na sociedade, que nós denominamos “sociedade da informação”, é a proteção à dignidade, liberdade e igualdade humanas, à medida que a tecnologia se torna mais invasiva e medidas de controle, propriedade e vigilância das informações se tornam mais rígidas e a desigualdade, mais visível [11].

Inúmeras tendências que caracterizam o desenvolvimento da sociedade da informação representam desafios para essa sociedade baseada em direitos humanos, em muitos casos, colocando-a em sérios riscos. Isso inclui regimes ampliados para o gerenciamento e propriedade das informações (por ex., regulamentos de copyright e patentes, acordos comerciais, sistemas de gerenciamento de direitos digitais), avanços rápidos na vigilância, sistematização e retenção de dados pessoais (por ex. legislação anti-terrorista, dispositivos de identificação por freqüência de rádio, IPV6, etc.) [12] e novos meios de censura e bloqueio de informações (por ex. firewalls e filtros, licença de provedores de Internet), para mencionar apenas alguns dos desenvolvimentos atuais [13].

O sistema de Direitos humanos está eternamente em evolução

O reconhecimento dos direitos humanos como a base da sociedade da informação ocorreu após muitas ¬negociações incluídas nos resultados oficiais da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação (CMSI), de Genebra, em 2003. O artigo 1 da Declaração de Princípios fala de uma sociedade da informação “que respeita e aplica integralmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos”. A visão articulada pela Declaração também reforça os quatro princípios de universalidade, indivisibilidade, inter-relação, interdependência, conforme é reafirmado na Declaração e no Programa de Ação de Viena. Em outras palavras, os direitos humanos na sociedade da informação não são apenas direitos civis e políticos, como liberdade de expressão, liberdade de agremiação, direito de teste ou à privacidade, mas inclui igualmente direitos econômicos, sociais e culturais, tais como o direito a ter um padrão de vida, educação, saúde, de beneficiar-se de progressos científicos e assim por diante. É importante ter isso em mente, uma vez que os grupos da sociedade civil tendem a ver os direitos humanos como algo menos importante que as questões de desenvolvimento, em vez de ser a base normativa para qualquer sociedade independentemente de seu nível de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, algumas organizações da sociedade civil, especialmente dos países do hemisfério norte, têm uma noção muito reduzida de direitos humanos e colocam o enfoque basicamente nos direitos civis e políticos - ou apenas na liberdade de expressão [15].

A Declaração de Princípios de Genebra afirma que a sociedade da informação não precisa resultar em uma discriminação ou na privação dos direitos humanos e que os estados são obrigados a promover e respeitar todos os direitos humanos dentro desse contexto [16]. No entanto, conforme estabelecido pelo Alto Comissário de Direitos Humanos das Nações Unidas, não há ainda uma forma clara de como responder a esse desafio. “Procuramos criar uma Sociedade da Informação, na qual as pessoas e os indivíduos sejam o ponto central, onde a dignidade humana seja estritamente respeitada e onde os direitos humanos sejam reconhecidos como os princípios diretores. Como podemos assegurar ainda mais que esses princípios sejam refletidos na Sociedade da Informação? Como podemos fazer melhor uso das tecnologias de informação e comunicação, que são as ferramentas vitais e a base para esse esforço? Essas questões esperam nossa resposta, nosso comprometimento e nossa ação combinada.” [17]

Do ponto de vista jurídico, muitos dos desafios para os regulamentos se relacionam à natureza transnacional da Internet. Os acordos internacionais tradicionalmente se basearam na consideração da jurisdição territorial, enquanto a Internet é um espaço de comunicação global, o que desafia essa premissa. Um dos debates políticos mais atuais relacionados à natureza global da Internet diz respeito aos direitos humanos e a governança na Internet e em que extensão os mecanismos atuais dessa governança afetam os direitos humanos. Muitos grupos da sociedade civil argumentam que, dentre outras coisas, as questões de privacidade, liberdade de expressão, acesso a informações e domínio público do conhecimento, relacionadas aos direitos humanos, estão em jogo nas estruturas existentes de governança. Além disso, há o desafio de se reformar as estruturas de administração existentes, uma vez que o fórum atual para o gerenciamento de nomes de domínio é uma entidade privada, dominada por um número limitado de países e baseada em um contrato com um único governo (no caso, o governo americano). No que se refere aos direitos humanos, as negociações atais devem garantir que os futuros mecanismos de governança da Internet respeitem os direitos humanos, tanto por sua composição e estruturas diretivas que pela avaliação e o monitoramento regular de suas decisões. “Trata-se de uma responsabilidade do Estado garantir que os mecanismos de governança na Internet sejam compatíveis com os padrões de direitos humanos, que haja meios de impô-los e que os governos sejam responsáveis pelas violações desses direitos, inclusive perante cortes internacionais. Os mecanismos de governança na Internet podem e devem ampliar os direitos humanos, garantindo um ambiente estimulante que proteja e reforce os padrões de direitos humanos, bem como os princípios democráticos de inclusão, transparência, verificações e balanços e a legislação” [18]. No momento, parece haver uma aceitação crescente da Internet como um bem comum global, o que implica o acesso eficaz para todos os países participarem das decisões com respeito ao gozo deste bem comum.

Um outro debate diz respeito à campanha global CRIS (Direitos à comunicação na sociedade da informação). A campanha CRIS levantou questões relacionadas à propriedade do conhecimento e à diversidade dos meios de comunicação dentro do programa da sociedade da informação, chamando a atenção para o ¬reconhecimento de um novo direito humano: o direito à comunicação. Em resposta a isso, inúmeros grupos de luta pelos direitos humanos argumentaram que essas questões podem e devem ser atendidas dentro do sistema existente de direitos humanos. O direito à comunicação não deve ser concebido como um direito novo e independente, mas como um termo com amplitude, que engloba em si mesmo os direitos à comunicação, abrangendo a implementação efetiva de um grupo de direitos existentes e relacionados [19].

Um contínuo campo de batalha final a ser mencionado é a luta para garantir que o trabalho pelos direitos humanos na sociedade da informação não se limite unicamente à afirmação do já estabelecido padrão de direitos humanos, mas que inclua a proteção eficaz e implementação desses direitos.

Com relação aos desenvolvimentos técnicos que ameaçam à privacidade, esses exigem uma estrutura política e jurídica rígida, colocada em contra-fluxo, por meio de avaliações de impacto e não apenas dos riscos manifestados em nossa vida cotidiana.

É urgente que encaremos continuamente o desafio de aproximar o mais possível as pessoas e os países dos padrões esboçados nos tratados de direitos humanos e de avaliar sua realização por meio de comparativos e indicadores de aplicação nacional e compatibilidade. Até o momento, o processo da CMSI mostrou pouca vontade política de atender a esse desafio.

17 de Abril de 2006

couverture du livre enjeux de mots Este texto é extraído do livro Desafios de Palavras: Enfoques Multiculturais sobre as Sociedades da Informação. Coordenado por Alain Ambrosi, Valérie Peugeot e Daniel Pimienta, este livro foi publicado em 5 de novembro de 2005 por C & F Éditions.

O texto é publicado por licença Creative Commons Atribuição; não é autorizado uso comercial.

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Direitos humanos 28 de Maio de 2009, por furucutel

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