Em termos filosóficos, toda dedução que tenha como fundamento fatos ou verdades reconhecidos é preferível àquela que se apóia apenas em hipóteses, ainda que sofisticadas.
Diderot & D’Alembert - Discurso preliminar

Conservar, transmitir, difundir as idéias, o saber. A questão não é nova. Ela já foi abordada com talento pelos enciclopedistas, bem como alimentou numerosos debates entre bibliotecários...

Mas com a chegada da informática, esta questão de gestão do conhecimento vai se apresentar de uma nova maneira. Alguns “visionários”, como Alvin Toffler com o “O choque do futuro” e, em seguida, “Os novos poderes”, Jean-Jacques Servan Schreiber com “O desafio mundial” colocam em evidência o lugar crescente ocupado pelo saber no processo de produção e o papel determinante que a informática deverá exercer na conservação e na difusão do conhecimento. Encontramo-nos no final dos anos 1970, os computadores multiplicam-se nas universidades e nos laboratórios de pesquisa. Eles vão revolucionar pouco a pouco o tratamento do conhecimento.

Sua utilização para a descrição das obras faz nascer uma nova tecnologia: a informática documental. Ela permite realizar as operações de indexação e de pesquisa com quantidades crescentes de obras. Pode-se projetar o desenvolvimento de grandes bancos de dados documentais, capazes de indexar grandes segmentos do conhecimento humano. Projetos de grande envergadura estão empenhados na construção de bancos de dados multidisciplinares.

Ao mesmo tempo, os pesquisadores em inteligência artificial exploram uma via ainda mais ambiciosa. Trata-se de fazer os conhecimentos interagirem entre eles. Com softwares que aplicam os princípios da lógica matemática, eles conseguem simular os raciocínios humanos sobre frações de texto. Esses dispositivos denominados “sistemas especialistas” (sistemas “experts” ou sistemas baseados em conhecimentos) elaboram conclusões ao explorar uma “base de conhecimento”. Eles parecem até mesmo criar diagnósticos (Mycin) ou avaliar situações.

Com a chegada da Internet nos anos 1990, os grandes bancos de dados documentais perderam seu lugar de local de acesso central das novidades científicas em face do desenvolvimento da troca direta de informações entre pesquisadores. As listas de e-mail, as notícias ou “news” depois a Web favorecem as novas práticas de intercâmbio do saber. Os “news groups” e outros fóruns eletrônicos multiplicam-se muito além dos meios científicos e técnicos. Alguns são fechados, reservados ao uso exclusivo de seus membros, mas muitos são abertos numa finalidade altruísta ou militante.

São estas experiências de reciprocidade do conhecimento e de publicação livre que vão afinal inspirar os teóricos de gestão da empresa. A gestão do conhecimento, nova disciplina das ciências da administração reúne um conjunto de receitas destinado a extrair o melhor partido da competência e da experiência dos assalariados da empresa.

Neste texto utilizaremos o termo inglês, reconhecido e empregado internacionalmente, “Knowledge Management” ou KM. Mas retomemos um pouco esses conceitos diferentes e sua evolução.

Os bancos de dados documentais

No final dos anos 70, ainda parecia possível reunir em um imenso banco de dados, a documentação de numerosas bibliotecas, talvez mesmo de todas as bibliotecas, e de torná-la acessível à distância graças à “telemática [1]”. O princípio seria indexar cada documento (obra, carta, artigo...), quer dizer, descrevê-lo por meio de palavras-chaves e um resumo. Essas descrições são atualmente denominadas de metadados [2].

Pensa-se em poder oferecer ao usuário a abrangência total das informações sobre um tema na medida em que as obras do domínio tenham sido indexadas e que seja possível formular a pergunta no idioma do banco de dados... Na França foi criado um instituto especializado para o tratamento de informações científicas e técnicas [3] e estamos empenhados no desenvolvimento de dois imensos bancos de dados para cobrir o conjunto das ciências e das técnicas: “Pascal”[4] para as ciências exatas e experimentais e “Francis”[5] para as ciências humanas.

Os projetos de bancos de dados documentais vão se tornar muito onerosos. Eles sofrem as conseqüências do crescimento vertiginoso da quantidade de publicações científicas em uma situação de estagnação relativa dos recursos orçamentários [6]. A essa situação soma-se a dificuldade de encontrar descritores (palavras-chaves) comuns a diversas disciplinas, sabendo-se que cada escola de pensamento está presa a um vocabulário específico, geralmente muito rico e muito preciso. Em face do crescimento das dificuldades, muitos projetos serão abandonados, outros serão reavaliados visando à sua redução. E finalmente, somente os bancos de dados mais especializados, destinados a comunidades científicas alvo terão condições de se impor à comunidade científica internacional. Um dos mais conhecidos é o “Medline” que engloba mais de 80 milhões de artigos no campo das ciências médicas.

Nos anos 1990, com a multiplicação dos sites da Web, um número crescente de documentos foi colocado online. Aparecem, então os primeiros programas de busca, dentre os quais o mais conhecido é o “AltaVista”. Mas será com o Google, nos anos 2000, que os programas de busca na Internet vão começar a destronar os bancos de dados documentais.

O crescimento poderoso dos computadores, a padronização dos formatos dos documentos, a eficácia das técnicas de digitalização e de reconhecimento automático dos caracteres permitem conservar a integralidade das obras sob forma numérica. A indexação manual, muito dispendiosa e muito dependente de um contexto, pôde ser substituída por uma indexação automática de todas as palavras. Esses índices imensos são processados por programas de busca cada vez mais sofisticados, capazes de levar em consideração o perfil do usuário, de avaliar e de resumir o conteúdo de cada documento e de classificar os resultados por ordem de relevância...

A pesquisa de alguns documentos, na montanha de informações apresentada na Web, parece-se um pouco com a procura por um mineral em um subsolo desconhecido, tanto que se fala em “data mining” (extração de dados).

Os sistemas especialistas ou sistema de bancos de conhecimento

Trata-se de um outro ramo do tratamento do saber com a informática. O objetivo dos sistemas especialistas (SE) não é apenas encontrar informações mas de raciocinar sobre elas. Um SE é formado por um “mecanismo de inferência” e por um conjunto de informações muito estruturadas, denominado de “base de conhecimento”. O mecanismo aplica a lógica matemática à base de conhecimento como meio de chegar a conclusões. Os princípios lógicos são, em geral, um pouco manuseados para simular o caráter imprevisível do raciocínio humano. Ao mesmo tempo a base de conhecimento é formada por regras que constituem a especialização de um domínio. Uma regra indica, por exemplo, que “se o paciente está com febre e tem a garganta vermelha então, muito provavelmente (0,8), ele está com angina”. O SE vai entabular um diálogo com o usuário em função do contexto “o paciente tem febre?”, “Ele é alérgico a este medicamento? “... De modo a fornecer um diagnóstico e propor um tratamento.

É no domínio médico que os SE obtiveram os resultados mais impressionantes. As primeiras experiências (sistema Mycin, DENDRAL...) mostram-se muito promissoras [7]. Mas, finalmente, os pesquisadores lutam para aperfeiçoar sistemas capazes de tratar uma grande quantidade de conhecimentos. O S.E. torna-se mais eficaz na medida que seu domínio de aplicação é restringido.. Os SE de hoje são muito especializados, eles estão integrados a software de diagnóstico e de ajuda na tomada de decisão.

Os SE é um dispositivo inquietante pois ele cria modelos para a tomada de decisão. Coloca-se, assim, o problema da responsabilidade por essa decisão.

A “Knowledge Management”

Este termo soa bem. Está de acordo com a lógica de marketing ensinada nas escolas de administração de negócios. Ele considera o saber como um bem da empresa, um capital de conhecimento que convém, pois, explorar ao máximo.

No plano técnico, a KM associa os métodos documentais: digitalização, indexação, eventualmente os sistemas especialistas e, sobretudo, as listas de difusão por comunidade que compartilham a mesma prática ou o mesmo centro de interesse. Pode-se considerar que a KM recicla, visando ao lucro da empresa capitalista, tecnologias e usos da Internet nascida nas comunidades científicas ou militantes e que daí tiraram a eficácia...

Mas a KM não se restringe apenas ao uso de um conjunto de tecnologias. O objetivo é, antes de mais nada, tirar o melhor partido do saber dos assalariados tornando-o explicito e valorizando o conhecimento deles. A KM está para as competências imobilizadas, o que a gestão financeira representa para os ativos monetários da empresa. Trata-se de obter o máximo de lucro. A KM permite, pois, gerenciar melhor o conjunto das competências dos assalariados e principalmente tirar partido de todos os talentos e em particular do saber extraprofissional. Os conhecimentos lingüísticos, técnicos, culturais que os empregados herdaram de sua história pessoal ou foram adquiridos no contexto de seu lazer poderão ser relacionados e os interessados inscritos na “comunidade de prática” correspondente. Esses saberes constituem aquilo que André Gorz denomina o capital humano [8] “As empresas devem se apropriar da criatividade das pessoas, canalizá-la para as ações e metas predeterminadas e obter sua submissão”.

A KM é o instrumento dessa canalização. Ela impõe ao pessoal que deve alimentar os bancos de dados, o respeito às normas rígidas que permitirão comparar as experiências. Eles deverão pôr em evidência as lições aprendidas, as dificuldades encontradas e disso deduzir as boas práticas. O conjunto de notas e de relatórios são registrados, indexados, arquivados. O banco de dados será consultado sistematicamente no preparo de cada missão. O registro da experiência da empresa forma uma espécie de molde intelectual a que todos deverão se conformar. A KM reforça assim a cultura da empresa no sentido de que esta é o resultado de práticas e de uma história coletiva. Se for possível evitar a reedição dos mesmos erros, a KM estimula, assim, o conformismo e prejudica as iniciativas originais. Os responsáveis deverão desenvolver uma argumentação muito sólida para justificar uma mudança de atitude.

Observemos que a British Petroleum (BP) encontra-se entre as primeiras empresas a se envolverem em um grande projeto de KM. Ao mesmo tempo o Banco Mundial instituiu um importante serviço “para melhorar a rapidez e a qualidade dos serviços, reduzir custos evitando-se repetir o mesmo trabalho, acelerar as inovações e estender a parceria na luta contra a pobreza.” [9]

A KM para o desenvolvimento?

Na esteira do Banco Mundial, diversas agências de cooperação passaram a se interessar pela KM. Trata-se, em especial, do caso de Bellanet [10] com seu projeto de compartilhar conhecimento [11] e da OxFam que acaba de reeditar um guia completo sobre o tema [12].

Precisamos nos perguntar sobre a relevância dos conceitos provenientes das escolas de administração de empresas para a gestão de um serviço público ou de uma ONG. Nós mostramos até que ponto a KM faz parte da palheta da “gestão” da empresa capitalista que tem por fim otimizar o rendimento do capital humano... Será que os métodos de gestão da empresa privada, cujo objetivo é o lucro, podem ser transpostos para um organismo encarregado de uma missão de interesse geral e financiado por fundos públicos, sejam eles nacionais ou internacionais?

Examinemos, de forma mais circunstanciada, a introdução da KM no Banco Mundial. Em junho de 1995, James D. Wolfensohn, novo presidente do grupo, devia impor o silêncio aos críticos do imobilismo e da burocracia de determinados membros do Conselho de Administração. Ele queria acelerar a adaptação do Banco à “extraordinária mutação da economia mundial (...) que se caracteriza por um desenvolvimento prodigioso do comércio mundial e do investimento privado”. Queria acelerar a adaptação do Banco à “extraordinária mutação da economia mundial (...) que se caracteriza por um desenvolvimento prodigioso do comércio mundial e do investimento privado”[13]. Ele desejava generalizar os métodos de gestão das empresas privadas e torna a instituição um organismo reativo e competitivo, capaz de tomar o mercado de outras instituições de cooperação internacional.

Introduziu a KM e deu início a uma ampla reorganização das estruturas hierárquicas [14] e das modalidades de avaliação do pessoal. Para conciliar o princípio da KM, orientada para a valorização egoísta do capital humano da empresa, e a missão altruísta da instituição internacional, ele introduziu a noção de Knowledge Sharing (KS) e lançou o “conceito” de “Knowledge Bank” encarregado de valorizar o saber no Sul para lutar contra a pobreza .

Em um documento de 20 páginas, traduzido para diversos idiomas, “O saber a serviço do desenvolvimento” [15], o Banco explica-nos muito claramente como a KM foi sentida como meio de favorecer o desenvolvimento. “Os países em desenvolvimento não precisam reinventar a roda (...) em vez de refazer o caminho já percorrido, eles podem adquirir e adaptar uma boa parte dos conhecimentos disponíveis nos países ricos. O custo das comunicações não para de diminuir e, também, jamais a transferência de conhecimento esteve a preços tão acessíveis” e indo um pouco mais além nas estratégias nacionais para reduzir as desigualdades, o BM explica-nos que “três fatores facilitam esta aquisição: o livre comércio, o investimento estrangeiro e a utilização sob licença de tecnologias importadas”. Observe-se, no entanto, que “os países em desenvolvimento só poderão tirar partido da massa de conhecimentos disponíveis no mundo se conquistarem a competência técnica necessária para pesquisar e selecionar as tecnologias... assimilá-las e adaptá-las”, ele propõe “transformar os organismos públicos de pesquisa em sociedades por ações”. A leitura deste documento, escrito no preciso momento em que a KM é instituída no Banco, obriga a que se constate que o saber proposto está fortemente impregnado por ideologia.

Será por esta razão que os conselhos de especialistas consideram a introdução da GC no Banco Mundial como um sucesso total? Em 2004 e nos cinco anos consecutivos, o Banco Mundial foi classificado pela Teleos entre as 20 “empresas de saber mais admiradas” [16]. Ele se equipara com a BP, Shell, Ernst & Young, HP, IBM e Microsoft...Torna-se, evidentemente, mais difícil saber se os melhores clientes do Banco Mundial, quer dizer os países mais adiantados, estão satisfeitos com o Banco do saber.

Esses mesmos especialistas observam que o Banco Mundial é, ao mesmo tempo, uma empresa de cultura voltada para o saber e uma empresa aberta ao intercâmbio em colaboração do saber. Trata-se aí de uma característica específica que vai se encontrar novamente e em termos semelhantes na OxFam [17]. A característica particular da KM para o desenvolvimento é, ao mesmo tempo, um dispositivo de valorização dos saberes internos e um programa de transferência de competências dirigidas aos clientes e parceiros.

O que seria mais generoso para o Banco do que compartilhar seu capital de saber, sua cultura interna? Esta medida que se inscreve na tradição das relações Norte-Sul, não é nem nova, nem surpreendente. Os países doadores são em geral levados a impor sua cultura aos países beneficiários da ajuda. A KM não é senão uma nova embalagem destinada a mascarar a relação de dominação. Esta expressão vem, oportunamente, renovar noções muito usadas ou consideradas como paternalistas, como “assistência técnica”, “fortalecimento das capacidades” ou “desenvolvimento das capacidades” [18].

Como entender a KM ?

A KM é apenas uma noção essencialmente neoliberal? Será que se poderá praticar uma KM alternativa na qual o objetivo não será nem a exploração do capital humano, de que nos fala André Gorz, nem a forma contemporânea da relação do tipo neocolonialista que Kenneth King analisa?

Primeiramente queremos observar que o termo saber criou uma ambigüidade. “O conhecimento é adquirido pela experiência, todo o restante não é senão informações” dizia Albert Einstein. O saber não pode ser ¬retirado como se tira água do fundo de um poço. Ele não é formado por elementos independentes que se pode escolher em uma loja de peças avulsas. Ele é adquirido pela experiência e a aprendizagem em um processo complexo que inclui uma relação de confiança entre o professor e o aluno. É acompanhado necessariamente da aceitação dos valores comuns que legitimam este saber.

Mas deixemos de lado o emprego inadequado da palavra “saber” para fins de marketing e vejamos quais são os fundamentos da KM:

- Gerar informações relativas à experiência e à competência: registrar essas informações nos bancos de dados documentais; assegurar que sejam colocados a disposição por meio de dispositivos sofisticados de pesquisa de informações (Data Mining); alimentar de tempos em tempos com outras ferramentas de conservação da especialização, como os sistemas especialistas;

- Favorecer a emergência de redes de colaboradores que compartilhem o saber e as motivações (comunidades de prática); utilizar recursos da informática baseados em listas de e-mail, fóruns online ou soft-ware de trabalho em grupo [19], para estimular essas redes;

- Para a KS (knowledge sharing - informação compartilhada), adicionar a troca de informações (de conhecimento) entre diversos financiadores e a troca de informações (as mesmas?) entre os financiadores e seus clientes ou parceiros.

É preciso constatar que essas práticas de especialização coletiva, talvez mesmo de inteligência coletiva [20] foram inventadas pelas comunidades que professam o compartilhamento do saber. Trata-se principalmente de comunidades científicas, a pesquisa fundamental não pode se desenvolver sem a livre circulação do conhecimento. Trata-se, ainda, de comunidades de desenvolvedores de software livres. Uma das características essenciais dessas comunidades é de funcionarem em um modo de intercâmbio não-mercantil que as coloca em oposição crescente aos excessos da economia liberal [21]. No entanto, o conceito de KM foi construído sobre uma lógica exatamente inversa. Ela consiste em recuperar o saber não-contratual dos empregados de uma empresa, de canalizá-lo e de inseri-lo na cultura oficial da empresa. O objetivo não é compartilhar mas obter vantagem comparativa na competição comercial.

Concluindo, deixemos pois a KM às escolas de administração de empresa e optemos por um vocabulário menos ambíguo e carregado de mais sentido: experimentação, aprendizagem, diálogo e cooperação, colaboração, publicação, gestão e intercâmbio de conteúdos livres, inteligência cooperativa.

13 de Fevereiro de 2006

couverture du livre enjeux de mots Este texto é extraído do livro Desafios de Palavras: Enfoques Multiculturais sobre as Sociedades da Informação. Coordenado por Alain Ambrosi, Valérie Peugeot e Daniel Pimienta, este livro foi publicado em 5 de novembro de 2005 por C & F Éditions.

O texto é publicado por licença Creative Commons Atribuição; não é autorizado uso comercial.

O conhecimento deve ser dado em acesso livre... Porém, ao mesmo tempo, os autores e editores necessitam fundos para continuar seu trabalho. Caso disponha dos meios necessários, encomende o livro em linha (39 EUR).